quinta-feira, 27 de dezembro de 2007

Vencida

Cada um escrevia um trecho e, em seguida, entregava ao outro para que continuasse. Assim nasceu o conto Vencida, terceira parceria poética que fizemos em 2007. Escrito durante uma das tantas aulas chatas que assistimos, expressa os sentimentos, as incertezas e as verdades de duas almas distintas. Em conflito de pensamentos e ações, é preciso decidir: vencer ou deixar-se ser vencido?


- Eu acho que as bicicletas fugiram – ela sibilou amarga.

- Fugiram? Não teriam se escondido? – respondeu o amigo.
- Não mesmo! Bicicletas desejam a liberdade eterna e não uma camuflagem momentânea. Está tudo triste agora e a dor é apenas o que resta... Quem nos limpará dessa perda que de tão intensa já se converteu em sangue?
- As bicicletas são insubstituíveis, sim. Mas precisamos esquecê-las. Limparemos a dor com o sangue. Chame o Onofre.
- É sim! Nada mais maravilhoso do que jogar sangue na dor... Ou a dor no sangue... Importa? Acho que o Onofre tem medo de que eu o chame...
- Chame-o, por minha conta. É preciso que ele veja. Ei! Não exagere no sangue, vamos precisar dele para outra coisa – disse o amigo, saindo misterioso.
- Não saia! Não me deixe... Onofre está mudo e perdeu um dos dentes. Está sedento e diz que entraria em uma das pirâmides se pudesse. Ele não se importa com as bicicletas ou mesmo com nosso sangue que cobre a dor...
O amigo volta, trazendo consigo dois pares de patins.
- Pronto – diz ele, entregando o par rosa – Podemos nos mover agora. Deixemos Onofre onde está. Sua apatia ainda lhe dará lições importantes. Já calçou?
- Sim. Você acha que poderemos sair daqui agora? Estou encharcada e com medo. Há areia nos meus cabelos e nos olhos. Tremo! E se não conseguirmos? E se estivermos presos?
- Também tenho medo, mas não podemos ficar. Em breve eles chegarão e poderão nos acusar... Sem provas, iríamos para um lugar mais quente e sujo, onde estar coberto de areia é ínfimo. Vamos, depressa.
- Ai! Acho que Onofre caiu do meu bolso!
- Deixe o Onofre! Deixe as bicicletas! Precisamos ir agora!
- Mas e o sangue? E essa vontade de definir coisas que já conhecemos? Olha, migalhas são partes que servem para ser somadas após a fragmentação. O propósito de ser migalha é existir para deixar de existir. Entende? Porque assim que a migalha vira o todo, ela morre! Morre sem deixar carcaça ou defunto para termos algo que justifique luto. Acho que sou migalha e não quero ir! Quero ficar e me ter!
- Quem disse que deixará de ser migalha? Nesta terra de lobos comendo lobos, as partes nunca são somadas! Você nunca será todo, portanto nunca morrerá. De luto, basta o da Terra. Estou indo, você vem ou não?
- Eu não sei! Desespero!
- Sinto, mas terei que deixá-la.
Ele vai... Deslizando pelos cumes, pelas dunas e valas. Ela se deita e puxa um manto de areia sobre si. Encolhe, encolhe... até se diminuir em um fiapo. Enquanto vai perdendo tamanho e existência. De sua cabeça sai uma borboleta. Borboleta escarlate que tinge o pálido céu egípcio de Perda. Um dos vários nomes da Dor.



Rodayne e Francisco, respectivamente.

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